quinta-feira, 24 de maio de 2012

Excertos da "Fonte das Escadinhas"


Numa das pontas do casario de não mais de uma dúzia de casas, no cimo do monte, com uma vista deslumbrante, avistava-se de um lado a serra de Sintra, e, do outro, Lisboa. À noite, podiam ver-se, através do grande vale, pequenas luzinhas que mais pareciam estrelas. Estas eram as luzes eléctricas da grande cidade ali tão perto, mas que ao mesmo tempo ficava a tantas horas de caminho.



No cimo da serra de Sintra, lá estava o imponente Palácio da Pena. Na aldeia, conheciam-no apenas como Palácio de Sintra, sem terem a mais pequena noção da sua importância ou riqueza. Era simplesmente bonito. Da verde Sintra vinham as queijadas, estas eram-lhes mais próximas.



Lisboa era uma cidade que começava a acordar ao som dos pregões, na sua maioria trazidos pelos saloios que a abasteciam. Havia muito que o alfacinha se habituara a não dispensar aquelas gentes, que formavam um tipo sui generis de graça e cor. Sempre polémico o tema da cultura saloia, a disputa entre próximos, alfacinhas[1] e saloios[2] e a ideia preconcebida de que o saloio é descendente de árabes e de mouros. O que ficava deste registo era sobretudo a imagem negativa do camponês, a figura do saloio associada a uma população dos arrabaldes antigos de Lisboa. Todavia, estes habitantes não eram em nada distintos dos minhotos, dos estremenhos ou dos alentejanos dos primeiros tempos do século, tendo uma conotação desajustada da realidade pelos letrados que sobre eles escreviam e que com eles conviviam, esquecendo-se muitas vezes de que eram estas gentes laboriosas e «moiros de trabalho» que alimentavam a cidade.



Hoje, numa dinâmica de «cidade alargada», onde já não se define onde termina a cidade e onde começam os seus concelhos limítrofes, o rasto bem vincado do saloio dos anos 20 até aos anos 50 perdeu-se. Agora, são os concelhos que reclamam essa identidade e tudo fazem para não perderem a sua cultura e as suas tradições.



Viviam naquele aglomerado de casinhas caiadas de branco menos de uma dúzia de famílias. Casas feitas de pedra e barro, na maioria térreas, simplesmente cobertas de telha, onde o frio entrava teimosamente por entre os seus intervalos. Aquando do silêncio da noite, o vento assobiava com tanta força que metia medo. Existiam apenas duas habitações que tinham sobrado. Sem luz, sem água, o lume era a fonte de energia para as pessoas se aquecerem e cozinharem. Os mais novos buscavam nos pinhais a lenha, um bem essencial. Todos precisavam dela e por essa razão a sua escassez era disputada.



Nem sequer existia uma mera taberna onde os homens pudessem juntar-se e falar das agruras das suas vidas. Votados ao isolamento e à plena miséria.



Numa madrugada invernosa do mês de Outubro de 1921, os galos cantavam nas capoeiras, algumas chaminés ainda deitavam um ténue fumo de algum tronco maior que havia ficado a arder durante a noite, o pó estava assente pela chuva, mas ainda se sentia o cheiro característico da terra molhada. A chuva parara, mas corria uma brisa fresca que transportava o cheio a eucalipto. E que bem sabia esse cheiro purificador e refrescante a entrar pelas narinas!



As lavadeiras já se preparavam para carregar as suas trouxas de roupa à cabeça, os poucos homens e rapazes da aldeia já tinham partido de enxada às costas para começarem um árduo dia de trabalho.



O farnel dos homens tinha sido preparado de véspera contendo apenas pão, um pequeno queijo seco de cabra, duas petingas fritas e uma garrafita de vinho. Serviria para a alimentação de um dia inteiro. Eram dias duros de trabalho. Desde que amanhecia até ao pôr-do-sol e estavam apenas protegidos da chuva e do frio por uma saca de serapilheira que levavam pela cabeça. Nos dias chuvosos a saca chegava a pesar quilos devido à água que já tinha ensopado.  



As hortas forneciam diariamente à grande cidade quase todos os bens frescos. Fizesse sol ou chuva era preciso trabalhar e raros eram os homens que tinham outra possibilidade de trabalho que não a agricultura.



As mulheres, de joelhos todo o dia sobre as presas de água, que eram retidas do ribeiro no fundo do vale, tinham uma cobertura feita de madeira e de telha, que as protegia do sol e da chuva e ainda umas canas em volta a servir de paredes, para as proteger do vento. Mesmo em pleno Verão, embora com menos abundância, havia uma pequena nascente na serra que alimentava aquelas presas. Era ali que as lavadeiras da aldeia passavam o dia inteiro para ganharem o seu «pão».



Transportavam à cabeça ou em burros as trouxas de roupa desde a aldeia até ao lavadouro e, depois de lavada, faziam o percurso inverso. As carroças não passavam da aldeia. O lavadouro ficava no fundo do vale e o seu acesso era feito por carreiros estreitos e sinuosos. E que dificuldade era subir e descer aqueles caminhos! Durante o Verão, faziam-no pela manhã antes do calor e, no fim do dia, pela fresca. O pior era de Inverno, quando a chuva teimava em não parar e o vento empurrava quase sempre ao contrário do que era preciso, os pés escorregavam na lama e quantas vezes a trouxa lhes caía da cabeça e a roupa tinha de voltar aos lavadouros. As freguesas queriam a roupa lavada e seca, não se importando se era Inverno ou Verão.



         Os joelhos eram protegidos pelas joelheiras, utensílios feitos em madeira, compostos de fundo, frente e dois laterais que protegiam os joelhos e o vestuário da água.



         Quando a roupa chegava em trouxas de Lisboa, primeiro era separada por diferentes tipos: branca, de cor, lençóis, fronhas, toalhas e peças mais delicadas. A branca e a mais suja iam primeiro para a barrela ― uma mistura de sabão, cinzas e água quente que ficava em pias de pedra ou em grandes alguidares de barro, de um dia para o outro. Depois da barrela, era dada uma pequena lavagem, sendo posta ao sol a corar, e de vez em quando era borrifada para não encarquilhar. Seguidamente ia de novo a lavar, ficando assim limpa e desencascada.



Às filhas das lavadeiras, ainda crianças, eram dadas a lavar as peças mais pequenas e soltas. A roupa era estendida a secar por cima das moitas dos carrascos pela serra. Lavar e estender fazia-se durante a semana e normalmente ao domingo dobrava-se e separava-se a roupa em trouxas a fim de a entregar às senhoras no dia seguinte.



A roupa estava marcada com iniciais ou marcas próprias de cada família, não havendo lugar a trocas. Conceição era uma das inúmeras lavadeiras que havia na região, que, com as duas filhas de tenra idade, passava toda a semana naquelas lides.



 A entrega era feita à segunda-feira quase sempre a pé, desde o Largo de Martim de Moniz até aos vários pontos da cidade, havendo algumas excepções onde passava o eléctrico. O transporte até Lisboa fazia-se em carroças ou galeras puxadas por mulas ou machos, que saíam à noite, de modo a estarem de madrugada no local da distribuição e voltarem ainda no mesmo dia. O valor pago pelas freguesas por cada peça maior rondava os três tostões.



Era uma vida dura, com toda a certeza. Mas o respirar do ar puro do campo, o chilrear dos pássaros, o silêncio apenas interrompido pela água do riacho que corria junto às pedras que serviam de lavadouros para esfregar a roupa, as cantigas ao desafio e a própria rivalidade entre as lavadeiras ajudavam a esquecer a dureza do trabalho. E os mexericos? Esses eram o prato forte das conversas, o diz-que-disse ou as lascarinhices, como as gentes saloias lhes chamavam. Também a disputa da água ou dos carrascos mais soalheiros, geravam por vezes discussões.



[1] Os de Lisboa.
[2] Os dos arredores de Lisboa.

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