Ali
escutava o barulho do silêncio, apenas interrompido pelo ruído de algum carro
que passava e pelo som da natureza. Era uma busca interior, de força e coragem
que tantas vezes me faltava. Por vezes, o agitar das folhas daquele sobreiro
quando o vento soprava de mansinho, parecia dar-me conselhos, uma coisa me dava
com toda a certeza… alguma paz… e era disso que eu mais precisava, paz! Sentei-me
mais uma vez naquela pedra branca e lisa, afagada pelo vento, polida pela
chuva, talvez milenar, quantos ali já se haviam sentado? Uns desfrutando da
sombra, outros abrigando-se da chuva, outros como eu, apenas meditando… por
baixo da copa daquele velho e único sobreiro que existia nas redondezas.
Sentado na velha pedra, que já devia conhecer o calor do meu pequeno corpo,
quase deitado, com a cabeça encostada ao tronco da árvore, contava as bolotas,
olhava as folhas, não sei se as via. Havia semanas que não parava de chover a
terra estava enlameada, as velhas botas enterraram-se, não me importei. Fiquei
preso á terra. O vento soprava direito á minha cara, como que a querer
acorda-me dos meus pensamentos, uma bolota caiu-me em cima da cabeça, como se o
vento não basta-se para me despertar, dei um salto, mas não consegui levantar a
terra tinha-me segurado pelos pés, estavam presos, presos à terra mãe que tudo
dá e tudo tira. Perguntei á bolota, porque me queria acordar dos meus
pensamentos? Perguntei ao vento, porque me afagava a cara? O vento respondeu
que era apenas o mimo que eu precisava. A bolota disse que era um «carolo» de
ânimo. E assim, com um fresco mimo, e um carolo á mistura, acordei dos meus
pensamentos. Levantei-me e percorri sem pressa de chegar, o caminho que ainda
faltava para me levar até casa. Aquele local passou a ser o meu local de refúgio,
ficava perto da estrada, mas tinha uns arbustos na frente que tapavam a sua visibilidade.
Era ali que reflectia, mesmo quando a noite já havia caído, não tinha medo, por
entre a ramagem e as bolotas contava as estrelas, ali no campo o céu parecia
mais estrelado do que em Lisboa, ou seria impressão minha?
terça-feira, 16 de outubro de 2012
Os
meus castigos já me eram indiferentes, apenas acrescentavam mais uma pitada de
raiva à já existente, a dores eram apenas e só as da alma que faziam «mossa»,
as físicas eram momentâneas e passavam rapidamente. Quantas vezes, desejei fazer
magia, bruxaria ou fosse lá o que fosse… encontrar uma fórmula de o fazer
desaparecer. Na história do homem há um desejo secreto, o desejo de matar para
se defender, para obter algo ou simplesmente para se vingar e era esta sede de
vingança que me assustava. Inevitavelmente, todos, iremos morrer, porventura a
vingança fará sentido? O mundo está em chamas e os corações dos homens são
brasidos cobertos de cinzas onde as chamas apenas dormem e para onde não
devemos soprar, sob pena de despertar um fogo incontrolável. E era este fogo
incontrolável que mais me metia medo, eu tinha medo dele, mas também tinha medo
de mim. Ninguém tem o direito de humilhar outro ser humano como ele nos fazia,
inicialmente pensava que o fazia porque eu não era seu filho, agora podia
verificar que embora mais moderadamente o fazia também aos próprios filhos. E a
relação com a minha mãe para além de violenta, agressiva, era estranha,
continuavam a sair quase todos os domingos, logo a seguir ao almoço.
Um excerto do "Barulho no silêncio"
Segundo Freud, os homens
não são criaturas gentis e amáveis, mas sim dotados de uma poderosa cota de
agressividade. E eu estou plenamente de acordo, com ele.
Durante quase toda a sua vida, a
minha mãe foi alvo de profunda humilhação. A humilhação é a única arma de
destruição maciça que realmente temos. A humilhação é por excelência a bomba
atómica de todas as nossas emoções. A humilhação vem sempre acompanhada de um
sentimento de invalidez e desprezo. Sentirmo-nos humilhados é como se,
constantemente tivéssemos a nossa cara pisada. E quando assim acontece,
tornamo-nos inevitavelmente e talvez eternamente amargos. A humilhação destrói
completamente o auto-respeito e ultrapassa todos os limites da nossa
tolerância. Mata mais que a própria morte.
Quando os nossos valores mais
profundos não são respeitados e muito principalmente quando esse desrespeito
vem das pessoas que mais nos deviam respeitar. O sentimento é gritante. É sem
sombra de dúvida a desvalorização da nossa própria vida e o vazio de todo o seu
sentido.
E, não é só
entre as quatro paredes da nossa casa que a humilhação existia e que a
sentia-mos.
Sinto-a, também no mundo à minha
volta, nas mais diversas formas de violência ou até nas mais variadas práticas
culturais que violam a dignidade do ser humano.
Mas, quem assim age, não terá também
um profundo desrespeito por eles próprios?
O ser humano está
esquecido ou até talvez nunca tenha aprendido! Que a falta de respeito pelo
outro, começa no respeito que devemos ter por nós próprios.
terça-feira, 11 de setembro de 2012
Quantas
vezes não são os laços de sangue que nos une, mas, uma grande amizade que nos
enlaça para toda a vida, não apenas o amor. E…não será também amor? Eu, acho
que amo o senhor Joaquim. Poucos compreendem a real dimensão da palavra amigo.
Numa verdadeira amizade como a tenho pelo senhor Joaquim, aquilo que o fizer
feliz, far-me-á também a mim e tenho toda a certeza que ele vive o mesmo
sentimento em relação à minha pessoa. Não me dá só mimos! Ralha quando é preciso,
aconselha, encaminha e sobretudo ouve-me. Sim ouve-me, sempre…dá-me o ombro…o
colo… a nossa amizade alimenta-se a cada dia, é uma planta que rego e alimento,
de sonhos, de respeito, de afectos, de palavras, mas também de silêncios…de
cada vez que penso na nossa relação…uma lágrima foge…a vida não me trouxe só
tristezas, também me deu presentes; olhos sinceros, risos de ouro, mensagem de
incenso e estrelas que brilham, que quase, quase… alcanço com as mãos…e com as
palavras do senhor Joaquim o meu peito se enche de nova seiva e se alimenta…
domingo, 27 de maio de 2012
Gosto...de gostar de mim!
Gosto… de gostar de mim!
Gosto… das coisas simples, como
eu
Gosto …da transparência ao invés
da escuridão
Gosto… de observar e ver
Gosto… de tocar e sentir
Gosto… de dar e ter prazer
Gosto… de dar e receber
Gosto… de quem gosta de mim!
quinta-feira, 24 de maio de 2012
Para um amigo de coração grande!
Não sei
explicar!!
Não deixa de
ser estranho
Não deixo de
ter medo
Mas foi um
ganho
Talvez,
ainda um segredo
Trocamos a
palavra
Trocamos
sentimentos
Sentimentos,
como terra lavrada
Trocamos,
também tormentos
E se dessa
troca
Resultar
esperança?
Então que
troquemos
Que
troquemos, perseverança
abastança,
festança, pujança,
e que a
amizade perdure na
confiança!
Só sei ...que era um qualquer domingo
Só sei…que era domingo,
não sei a data, nem precisar o mês, mas tenho a certeza que era primavera. As andorinhas
povoavam os telhados anunciando a chegada do calor e mostrando que o inverno já
tinha virado as «costas», elas voltavam sempre a ocupar os ninhos construídos
no ano anterior ou se por acaso nós os houvéssemos destruído construiriam um
novo, sempre perto do qual onde haviam nascido, estas aves davam alegria e cor
à cidade e nós miúdos muito gostávamos da sua chegada e daquilo que ela
representava. O bom tempo, o sol, os dias maiores, propícios a mais
brincadeira.
A minha mãe ajudou-me a
tomar banho e deu-me para eu vestir a melhor roupa que eu tinha, umas calças
azuis escuras, um pulôver de decote em bico, também azul, uma camisa aos
quadrados, já muito russa de ter sido lavada muitas vezes. As calças e o
pulôver, havia trazido de casa dos patrões, tinham pertencido ao filho mais
novo. Era hábito a patroa dar-lhe a roupa que já não servia aos filhos. Eram
mais velhos do que eu. Aliás! Eu só vestia roupa usada dos filhos do advogado
ou de outros.
Depois de pronto
disse-me que eu ia ter uma surpresa:
− Hoje vais conhecer o
teu pai!
Fiquei pouco entusiasmado, não me fazia falta,
nunca o tinha visto. Apenas tinha visto uma fotografia sua, quando uma vez «bisbilhotei»
a carteira da minha mãe.
Sentia alguma pena de
não ter pai para partilhar as alegrias e os fracassos e até jogar à bola, como
alguns dos meus amigos faziam, mas já estava habituado, quando eu perguntava
ela sempre me dizia que estava em viagem e que não sabia quando voltava, há
muito que tinha deixado de perguntar.
Depois de ambos estarmos
prontos, saímos em direcção ao Rossio, fomos direitos à pastelaria Suíça.
Quando nos aproximámos da esplanada a minha mãe disse:
– Olha! O pai está ali á nossa espera!
Quando o vi, pensei: – Não
é o meu pai, é gordo de bigode e careca, o meu pai até pode já estar gordo, mas
não era careca e não tinha bigode, portanto aquele fulano não é de maneira
nenhuma o meu pai.
− Xavier dá um beijinho
ao pai – disse a minha mãe quando chegámos.
Com pouca vontade lá dei um beijo ao Senhor.
− Sentem-se aqui. Estava
à vossa espera. O que querem comer? Vamos lanchar e depois daremos uma volta
por aí – disse o desconhecido.
Sentámo-nos os três à
mesa, o pretendente a meu «pai» bebia uma cerveja, a minha mãe pediu para cada
um de nós, um galão e um queque. Como me soube bem aquele bolo…devo tê-lo
comido em duas dentadas. Há quanto tempo não comia um bolo!
Quando acabámos de
comer, tomamos os três a direcção do Terreiro do Paço, depois…fomos até à beira
do Tejo. Quando aí chegados, sentámo-nos um pouco a ver os pescadores lançarem
as suas canas na tentativa de apanharem algum peixe. Era engraçado ver os
homens colocarem o isco na ponta da cana e lançar o mais longe que conseguiam,
na esperança que algum peixe mordesse o anzol. Havia um pescador que já tinha
um balde com água com uns quantos peixitos lá dentro, levantei-me e fui observá-los,
alguns, ainda mexiam, outros, apenas boiavam no cimo da água, lembro-me que
fiquei com pena, coitadinhos... corria uma aragem fresca na margem do rio, os
cabelos da minha mãe nesse dia estavam soltos e com o vento a soprar-lhes
estavam despenteados, assim, ficava mais bonita. Pouco falaram comigo, fui
brincando na sua frente, andando ao pé-coxinho, mandando umas pedrinhas a
alguns passaritos que pousavam no passeio, andavam uns meninos de bicicleta,
fiquei com pena de não ter uma também...
Será outro? Talvez!
A minha mãe havia
nascido numa aldeia perto de Lamego, tinha vindo para Lisboa por intermédio de
umas pessoas conhecidas, para servir como empregada interna na casa de um
advogado. Jovem, ingénua e com pouca formação, após algum tempo de namoro com
um rapaz que trabalhava no porto de Lisboa, engravida. No dia que lhe dá a
notícia…soube que era casado. Na última vez que se encontraram, o meu pai
colocou-lhe no bolso umas quantas notas. E disse-lhe:
− Não, estragues a tua
vida e a minha, vai tirar isso!
As dúvidas, o medo, a insegurança e a solidão
encontraram espaço para entrar e permanecer durante muitos anos. A dor de saber
que não ia poder compartilhar a gestação, e muito menos o nascimento, não a
demoveu...após, muitas
noites sem dormir, muitas perguntas sem resposta, muitas incertezas…, decidiu.
Ia dar à luz este filho.
Quando
os patrões deram pelo «sucedido»; disseram-lhe que podia lá continuar a
trabalhar, mas assim que a criança nascesse deveria arranjar sitio onde dormir.
Pouco antes de eu nascer, não teve outro remédio…senão, procurar, um local onde
pudéssemos os dois viver.
Nasci, onde quase todas
as mães davam à luz, no «aviário» de Lisboa, a Maternidade Dr. Alfredo da Costa.
Ela tinha acabado de fazer vinte anos, alta e magra, de cabelos compridos
pretos, olhos castanhos grandes, apesar de não ser feia, tinha um ar pouco
cuidado.
Passámos a viver, num quarto subalugado, nas
águas furtadas, dum prédio muito antigo e já com alguma degradação, numa rua
estreita e íngreme ao lado do Hospital de S. José. A escada era tão escura e
tão a pique que muitas vezes subíamos de gatas.
Desde que partira da
terra natal, nunca mais tinha ido visitar a família. Escrevia de vez em quando,
nem os meus avós sabiam quem era o meu pai e até pensavam que vivíamos os três.
A velhota, a D.
Joaquina que nos tinha subalugado o quarto, enquanto fui pequeno também tomava
conta de mim, mas agora estava muito velhinha, já precisava era de quem tomasse
conta dela! O que ela queria era que eu me sentasse ao seu lado, no sofá da
sala, com uma mantinha pelas pernas a fazer-lhe companhia. Ela via todas as
telenovelas e queria que eu fizesse o mesmo, mas eu, não achava nenhuma piada
aquelas histórias.
Vezes sem conta…ficava
sozinho, empoleirava-me em cima de um banco na pequena janela, e tentava contar
os carros que avistava no largo do Martins de Moniz, levava comigo uma folha de
papel e uma caixinha de lápis de cor e usava o parapeito da janela para fazer
risquinhos das suas cores e tentava contá-los por cores.
Era um garoto franzino,
de cabelos pretos, olhos grandes, carente, muito carente de bens e de afecto.
Desilusão!
Era
madrugada
Acordei
estremunhada
Pouco
compreendi
Só horas
mais tarde percebi
Depois foi a
alegria
Mais tarde a
euforia
Logo a
seguir a esperança
Depois veio
a mudança
Os anos
foram passando
Com avanços
e recuos fomos andando
Rindo e
chorando
Muitas vezes
vibrando
Tantos anos
passados
Tantas lutas
ignoradas
Tantas
esperanças sufocadas
Tantas
lágrimas derramadas…
Estamos
encurralados…
Pela
desilusão, pela humilhação
Pela
desgovernação
Pelos
abutres tentaculados.
Teu peito!
Planície…
salpicada de
branco
Não tem neve
Não tem
geada
Não está
gelada
Pulsa
Respira
Transpira
Branca…
Foi do tempo
Tempo que
não é tempo
Mas que
sopra como o tempo
E foge como
o vento
E arde como
a chama…
Excertos da "Fonte das Escadinhas"
Numa das pontas do
casario de não mais de uma dúzia de casas, no cimo do monte, com uma vista
deslumbrante, avistava-se de um lado a serra de Sintra, e, do outro, Lisboa. À noite,
podiam ver-se, através do grande vale, pequenas luzinhas que mais pareciam
estrelas. Estas eram as luzes eléctricas da grande cidade ali tão perto, mas
que ao mesmo tempo ficava a tantas horas de caminho.
No cimo da serra de
Sintra, lá estava o imponente Palácio da Pena. Na aldeia, conheciam-no apenas
como Palácio de Sintra, sem terem a mais pequena noção da sua importância ou riqueza.
Era simplesmente bonito. Da verde Sintra vinham as queijadas, estas eram-lhes
mais próximas.
Lisboa era uma cidade que
começava a acordar ao som dos pregões, na sua maioria trazidos pelos saloios
que a abasteciam. Havia muito que o alfacinha se habituara a não dispensar aquelas
gentes, que formavam um tipo sui generis
de graça e cor. Sempre polémico o tema da cultura saloia, a disputa entre
próximos, alfacinhas[1] e saloios[2] e a
ideia preconcebida de que o saloio é descendente de árabes e de mouros. O que
ficava deste registo era sobretudo a imagem negativa do camponês, a figura do
saloio associada a uma população dos arrabaldes antigos de Lisboa. Todavia,
estes habitantes não eram em nada distintos dos minhotos, dos estremenhos ou dos
alentejanos dos primeiros tempos do século, tendo uma conotação desajustada da
realidade pelos letrados que sobre eles escreviam e que com eles conviviam,
esquecendo-se muitas vezes de que eram estas gentes laboriosas e «moiros de
trabalho» que alimentavam a cidade.
Hoje, numa dinâmica de «cidade
alargada», onde já não se define onde termina a cidade e onde começam os seus
concelhos limítrofes, o rasto bem vincado do saloio dos anos 20 até aos anos 50
perdeu-se. Agora, são os concelhos que reclamam essa identidade e tudo fazem
para não perderem a sua cultura e as suas tradições.
Viviam naquele aglomerado
de casinhas caiadas de branco menos de uma dúzia de famílias. Casas feitas de
pedra e barro, na maioria térreas, simplesmente cobertas de telha, onde o frio
entrava teimosamente por entre os seus intervalos. Aquando do silêncio da noite,
o vento assobiava com tanta força que metia medo. Existiam apenas duas
habitações que tinham sobrado. Sem luz, sem água, o lume era a fonte de energia
para as pessoas se aquecerem e cozinharem. Os mais novos buscavam nos pinhais a
lenha, um bem essencial. Todos precisavam dela e por essa razão a sua escassez
era disputada.
Nem sequer existia uma
mera taberna onde os homens pudessem juntar-se e falar das agruras das suas
vidas. Votados ao isolamento e à plena miséria.
Numa madrugada invernosa
do mês de Outubro de 1921, os galos cantavam nas capoeiras, algumas chaminés
ainda deitavam um ténue fumo de algum tronco maior que havia ficado a arder durante
a noite, o pó estava assente pela chuva, mas ainda se sentia o cheiro
característico da terra molhada. A chuva parara, mas corria uma brisa fresca
que transportava o cheio a eucalipto. E que bem sabia esse cheiro purificador e
refrescante a entrar pelas narinas!
As lavadeiras já se
preparavam para carregar as suas trouxas de roupa à cabeça, os poucos homens e
rapazes da aldeia já tinham partido de enxada às costas para começarem um árduo
dia de trabalho.
O farnel dos homens tinha
sido preparado de véspera contendo apenas pão, um pequeno queijo seco de cabra,
duas petingas fritas e uma garrafita de vinho. Serviria para a alimentação de um
dia inteiro. Eram dias duros de trabalho. Desde que amanhecia até ao pôr-do-sol
e estavam apenas protegidos da chuva e do frio por uma saca de serapilheira que
levavam pela cabeça. Nos dias chuvosos a saca chegava a pesar quilos devido à
água que já tinha ensopado.
As hortas forneciam diariamente
à grande cidade quase todos os bens frescos. Fizesse sol ou chuva era preciso
trabalhar e raros eram os homens que tinham outra possibilidade de trabalho que
não a agricultura.
As mulheres, de joelhos
todo o dia sobre as presas de água, que eram retidas do ribeiro no fundo do
vale, tinham uma cobertura feita de madeira e de telha, que as protegia do sol
e da chuva e ainda umas canas em volta a servir de paredes, para as proteger do
vento. Mesmo em pleno Verão ,
embora com menos abundância, havia uma pequena nascente na serra que alimentava
aquelas presas. Era ali que as lavadeiras da aldeia passavam o dia inteiro para
ganharem o seu «pão».
Transportavam à cabeça ou
em burros as trouxas de roupa desde a aldeia até ao lavadouro e, depois de
lavada, faziam o percurso inverso. As carroças não passavam da aldeia. O
lavadouro ficava no fundo do vale e o seu acesso era feito por carreiros
estreitos e sinuosos. E que dificuldade era subir e descer aqueles caminhos! Durante
o Verão, faziam-no pela manhã antes do calor e, no fim do dia, pela fresca. O
pior era de Inverno, quando a chuva teimava em não parar e o vento empurrava
quase sempre ao contrário do que era preciso, os pés escorregavam na lama e
quantas vezes a trouxa lhes caía da cabeça e a roupa tinha de voltar aos
lavadouros. As freguesas queriam a roupa lavada e seca, não se importando se
era Inverno ou Verão.
Os
joelhos eram protegidos pelas joelheiras, utensílios feitos em madeira, compostos
de fundo, frente e dois laterais que protegiam os joelhos e o vestuário da água.
Quando
a roupa chegava em trouxas de Lisboa, primeiro era separada por diferentes
tipos: branca, de cor, lençóis, fronhas, toalhas e peças mais delicadas. A
branca e a mais suja iam primeiro para a barrela ― uma mistura de sabão, cinzas
e água quente que ficava em pias de pedra ou em grandes alguidares de barro, de
um dia para o outro. Depois da barrela, era dada uma pequena lavagem, sendo
posta ao sol a corar, e de vez em quando era borrifada para não encarquilhar.
Seguidamente ia de novo a lavar, ficando assim limpa e desencascada.
Às filhas das lavadeiras,
ainda crianças, eram dadas a lavar as peças mais pequenas e soltas. A roupa era
estendida a secar por cima das moitas dos carrascos pela serra. Lavar e
estender fazia-se durante a semana e normalmente ao domingo dobrava-se e
separava-se a roupa em trouxas a fim de a entregar às senhoras no dia seguinte.
A roupa estava marcada
com iniciais ou marcas próprias de cada família, não havendo lugar a trocas. Conceição
era uma das inúmeras lavadeiras que havia na região, que, com as duas filhas de
tenra idade, passava toda a semana naquelas lides.
A entrega era feita à segunda-feira quase
sempre a pé, desde o Largo de Martim de Moniz até aos vários pontos da cidade, havendo
algumas excepções onde passava o eléctrico. O transporte até Lisboa fazia-se em
carroças ou galeras puxadas por mulas ou machos, que saíam à noite, de modo a
estarem de madrugada no local da distribuição e voltarem ainda no mesmo dia. O
valor pago pelas freguesas por cada peça maior rondava os três tostões.
Era uma vida dura, com toda
a certeza. Mas o respirar do ar puro do campo, o chilrear dos pássaros, o
silêncio apenas interrompido pela água do riacho que corria junto às pedras que
serviam de lavadouros para esfregar a roupa, as cantigas ao desafio e a própria
rivalidade entre as lavadeiras ajudavam a esquecer a dureza do trabalho. E os
mexericos? Esses eram o prato forte das conversas, o diz-que-disse ou as
lascarinhices, como as gentes saloias lhes chamavam. Também a disputa da água
ou dos carrascos mais soalheiros, geravam por vezes discussões.
Se eu fosse capaz!
Se eu fosse capaz!
Ah! Se eu pudesse…
Afiar a faca
Soltar a matraca
Dizer o que penso
Fazer o que acho…
Ah! Se eu fosse capaz…
De fazer o que penso
De dizer o que acho
De espetar a faca
De abrir olhos…
Ah! Se eu fosse capaz…
De tirar as vendas
Aos que não querem ver
E… de abrir a cabeça
Aos que não pensam…
Ah! Se eu fosse capaz…
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